quarta-feira, 15 de agosto de 2007

Faltou a gelada

A gente vive uma democracia na qual se destaca principalmente para mim, como artista e jornalista, a liberdade de achar e dizer o que quiser de tudo o que a gente presta atenção no que os outros - notadamente as autoridades - fazem ou deixam de fazer. Lembram-se da alagação de 1988? Vieram donativos de tudo que é canto do país, não foi? Sabe o que as “autoridades” da época deram para os desabrigados? O dedo médio em riste. Foi isso o que eles deram e depois levaram os colchões, as telhas, as roupas... Enfim, você sabe, não é? Todo mundo sabe.

Hoje eu conversava com um piloto profissional do ramo de transportes alternativos, que me falava sobre seu compadre Chico Olegário, que se encontra agoniado, flagelado e devidamente abrigado no parque de exposições, juntamente com seus familiares e vizinhos. O Chico, de modo agradecido e, pasme, feliz com sua condição complicada e comovente, como bom acreano que é, capaz de tirar do aperreio e da tragédia o reconhecimento pelos esforços solidários, confidencia ao compadre sua satisfação com a ajuda humanitária.

- Cumpade, os home num tá de brincadeira, não. Pense num negoço organizado! Marrapaiz, tá melhor do que lá em casa! É todo dia de manhã, sempre na merma hora: café, leite com tódi pras criança, tapioca, pão passado com mantega – Tá pensado que é margarina, é? É não! É mantega mermo! Fruta, refresco... Uma ruma de coisa. Almoço reforçado. Um dia é bife, no outro é frango, no outro é peixe, verdura, aquele arrozim bem temperadim, aquele feijãozim no jeito. Precisa tu ver, manim!

-Depois, de tarde, tem brincadeira c’os minino. É circo, filme. Todo dia tem filme. Aí, depois vem a hora da merenda. Tudo bem ajeitadim. É refresco, bolacha, sanduiche de queijo. Rapaz, os home num brinca, não! De noite, a janta é reforçada também. É sopa boa, macarrão com carne moída, depois tem o cafezim. E tem as enfermeira, os médico, o Samu todo tempo ali, de plantão. O menino dá uma tossida, já tem uma mulher com o xarope. Eles num esqueceram de nada. Ali são organizado, ó! Tô pra ver um negoço desse!

-A situação da gente tá de lascar, mas, pra tu ver, parece que a gente tá é de férias, sabe? A gente sabe que vai miorá. Né possive, né? Depois que o rio vazar, vai miorá, sim. Assim, no começo da tarde, bem depois do almoço, da gente já ter dado uma cochilada, eu e os minino, meus colega do bairro se junta pra bater um dominozim debaixo duma mangueira enquanto as muié vão atrás de receber as roupas e os brinquedo que vão chegando nos caminhão do Exército e dur Bombeiro. Marrapaiz, é bom demais. Só é ruim porque os home, num traz uma cervejinha pra nóis moiá a palava.

E o Chico Olegário ri, ri como só os felizes conseguem. Acredito que nem todos os desabrigados sejam tão folgados como o compadre do meu amigo, mas, com certeza quem está nesta situação de completa dependência do poder público e da boa vontade dos outros, e recebe este apoio da forma tão bem descrita pelo Chico Olegário tem, de seu jeito simples, como forma de agradecimento a tudo, um sorriso inefável no rosto. Espero que o Chico tome uma atitude nobre e vá ajudar sua mulher na reconstrução de suas vidas e, com isso, merecer tomar uma gelada no fim do expediente.

O texto refere-se à enchente do Rio Acre ocorrida em 2006, no estado do Acre

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