sábado, 30 de abril de 2011

Tesouros perdidos

Um velho adágio popular diz assim: Tem coisas que a gente só valoriza quando perde. Brega, piegas, mas rico em verdade e significado. Possuímos minúsculas preciosidades divinas, que vem conosco desde nascença: os cílios. Fundamentais na proteção de nossos olhos, sutis e essenciais acessórios de fábrica, de tão frágeis e delicados são insubstituíveis. Desleixados, ignoramos sua existência, ainda que sejam o alvo mais próximo de nossa visão.

Não sendo através de um espelho, num paradoxo desconcertante, só enxergamos um cílio quando ele se afasta do olho. Mais patético ainda é que o cílio que costumeiramente vemos, repousado serenamente, feito um cisco no rosto, despregou-se do olho de outra pessoa. Aí a gente comunica à pessoa mutilada, dizendo que tem um cílio em seu rosto e ela, assim como qualquer um de nós, num misto de surpresa e nojo passa, instintivamente na face, as costas dos dedos da mão e afasta para longe, para sempre seu caríssimo pedaço.

As crianças, com sua maravilhosa sabedoria infantil, dão mais valor ao cílio. Tinha uma brincadeira que eu fazia com minhas irmãs, quando pegávamos um cílio. Era um tipo de mandinga, sei lá, pra realizar desejos. Um joguinho divertido que valorizava aquele pequeno pelinho da pálpebra, dando-lhe propriedades mágicas. Creio que ainda tem gente, até adultos que ainda faz isso. Apertando o cílio entre nossos polegares, sacudindo as mãos e dizendo palavras mágicas, quem ficasse com o cílio no dedo, teria seu pedido realizado.

Ana Carollina tinha três pra quatro anos quando viu um cílio em meu rosto. Curiosa, perguntou porque tinha um bigode meu fora do lugar. Eu ri e dei uma aulinha de cílio pra ela. De olhar fixo, atenta, compreendeu a importância daquele pelinho para seu olho, mas ficou pensativa e meio triste ao saber que jamais nasceria outro cílio no lugar de onde aquele havia saído. Me fez dar um bela gargalhada ao perguntar se meu olho ia ficar careca.

Pra alegrá-la de novo, fiz com ela a brincadeira do cílio no dedo. Ela adorou. Ficou super feliz porque ganhou o jogo e seu desejo iria se realizar. Correu, foi espalhar sua vitória pra todo mundo. Aí, sabe como é, né? Começou a me encher a paciência. Queria porque queria que eu revelasse o meu desejo, já que eu tinha perdido o jogo e, em sua lógica extremamente coerente, ela tinha o direito de saber. Insisti que era segredo, isso e aquilo. Sem jeito.

Pra que ela continuasse feliz, eu concordei em revelar meu desejo, contanto que ela também revelasse o seu. Topou. Então eu disse que desejei que ela fosse a menina mais feliz do mundo. Surpreendentemente, ela ficou brava e eu fiquei boquiaberto. Ela disse: Ah, não! Assim, tu ganhou o jogo também, porque eu desejei que, se nascesse de novo, outro cílio no seu olho, eu seria a menina mais feliz do mundo!

Faz uns quinze anos que não a vejo. Sempre que enxergo um cílio, me lembro desse dia. Nunca esqueci daquele cílio. Aquele pequenino membro, que afastei de mim, com as costas dos dedos da mão, num ato desastrado. Nunca mais vi aquele insubstituível cílio, que deixou em seu lugar uma enorme vala aberta em minha pálpebra inferior, por onde sempre passam e jorram, com mais vasão as minhas mais remorseadas e preciosas gotas de saudade.

Um comentário:

Happy Marler disse...

brega braga briga comigo nao, q eu voltei...