quarta-feira, 29 de dezembro de 2010

Márcio Chocorosqui escreve

A medicina e as letras

A conversa entre médicos sobre assunto da profissão se manifesta por uma linguagem pouco amistosa para leigos. O mesmo ocorre entre professores de Português ou gramáticos versando sobre assuntos de linguagem. E se misturássemos as duas áreas de atuação, ressaltando a citada por último? Poderíamos imaginar, mais ou menos, uma cena como esta:
Após uma gravíssima colisão entre duas onomatopeias, um texto entra em coma. Um gramático-cirurgião analisa o sujeito paciente quando chega, às pressas, o estagiário residente trazendo os exames:
— Doutor, qual é o quadro?
— Bem... Aqui quase houve um infarto da mesóclise. Mais adiante, vemos um tumor no núcleo do sujeito já em estado de metáfora.
— Mas isso não é grave, doutor.
— Para este texto sim. Provavelmente não seguiu as orientações linguísticas que lhe proibiam o consumo excessivo de figuras de linguagem. O caso pede uma operação semântica para lhe restituir a denotação.
— E este outro tumor aqui, doutor?
— Ah, este não é maligno. É apenas proveniente de um acúmulo de lipídios ocasionado pela repetição do pronome proclítico ao verbo.
— Perdão, doutor, mas vejo, como sintoma recorrente, a repetição de verbos no gerúndio em estranha aglomeração frasal, como aqui, olha: “vamos estar providenciando...”.
— Bravo, rapaz! Trata-se de um típico caso de gerundismo, uma epidemia que assola a língua portuguesa.
— E tem cura?
— Infelizmente, é quase incurável. Muitos textos têm que conviver com essa doença. Alguns não a conseguem tolerar e morrem.
— Doutor, os exames mostram que o texto estava alcoolizado.
— Um texto alcoólatra. Isso agrava a situação. Vamos proceder à intervenção gramatical imediatamente.
— Espere, doutor, aqui diz, também, que este texto não tem plano de revisão gramatical.
— Não! Sendo assim...
— Deixemos para mais tarde, doutor?
— Certamente. Agora vamos examinar aquele paciente com crises de pleonasmo.

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