quarta-feira, 21 de janeiro de 2009

Professor Bené escreve

Complicar não custa nada
Beneilton Damasceno*
À exceção de um tímido lembrete de trinta e dois caracteres deixado na mesa do editor-chefe do Página 20 sábado, é a primeira vez que ultrapasso uma linha para (suponho) me comunicar com alguém tendo o cuidado de acatar a nova ortografia do país, que passou a valer depois dos últimos fogos do réveillon.
Minha aparente tranqüilidade (perdão, agora é “tranquilidade”, pois a figura do trema foi sumariamente banida da língua tropical) como escrevinhador e revisor virou um pandemônio. Para começo de conversa, o corretor automático do computador não pára (o certo é “para”) de me chamar a atenção e sublinha tudo de vermelho. E mandou ontem, via e-mail, um recado que considero no mínimo insolente: somente o juiz ou autoridade similar vai fazê-lo mudar de idéia (que virou “ideia”) e engolir essas regrinhas mixurucas criadas por quem não tinha muito que fazer.
Por conta da bendita reforma, ontem de manhã tive uma discussão feia com o rapaz da farmácia onde compro fiado. Por telefone, reivindiquei um desconto na pomada de penicilina do estoque velho, já que o antiinflamatório agora ganhou um tracinho. O funcionário, como a maioria dos conterrâneos, refratário às mudanças na língua, veio com quatro pedras na mão. “Meu senhor, a Vigilância Sanitária desde quinta-feira proibiu a gente de comercializar esse medicamento. Só temos ‘anti-inflamatório’. Com hífen! Tente pela internet, talvez seja possível algum genérico no mercado negro. Ou ali em Cobija. Mais alguma coisa?”. Pam! Desligou.
Numa conhecida loja da cidade, ainda encontrei dois microondas modelo 2008, ultrapassados. Pena que já tinham placa de “vendidos”. Na fila, mais de cento e vinte pessoas torciam pela desistência de um dos compradores para poder dar o melhor lance. A vendedora fez questão de adiantar, porém, que o eletrodoméstico só tem garantia de quatro anos, findos os quais ele fica suscetível a todo tipo de defeito - do curto-circuito à ferrugem precoce. E aproveitou para exibir a nova linha de “micro-ondas” com controle remoto e manual de instruções totalmente de acordo com a nova ortografia.
Enquanto escrevo, acompanho num dos portais de notícia a revolta de uma famosa atriz global para manter incólume seu sobrenome. Se for obrigada a seguir a determinação oficial, a vetusta Marília Pêra vai ter que assinar Marília Pera. Ou então - que vergonha! - impetrar na Justiça um mandado de segurança, com pedido de liminar, e esperar, sabe-se Deus até quando, o julgamento do mérito no Supremo. Sorte dela é que a pronúncia da palavra, até que se crie outra lei, ficará mantida.
Puxando a discussão aqui para a terrinha, muita gente malhou à vontade o senador Tião Viana, responsável pela mudança do fuso horário do Acre e de algumas cidades da Amazônia. Houve até abaixo-assinado para que a lei, que entrou em vigor em junho do ano passado, fosse revogada. A justificativa dos inconformados era de que a população do Acre e dos municípios atingidos não havia sido consultada com antecedência. A malfadada idéia (repito: “ideia”), que virou inclusive mote na campanha eleitoral, felizmente não vingou. Se bem que em 2010 haverá eleição novamente...
Como o pau que bate em Chico bate em Francisco, seria coerente que a nação brasileira, em especial a família acreana, iniciasse uma movimentação de repúdio à mudança na língua escrita, essa sim, empurrada goela abaixo dos caras-pálidas do patropi sem qualquer referendo. Além do quê, trata-se de uma imposição que em nada vai beneficiar ou prejudicar os habitantes lusófonos do planeta. A reforma nada mais foi do que uma criação inócua, desnecessária e, sobretudo, dispendiosa para o Brasil, Portugal, Angola, Moçambique, Cabo Verde, São Tomé e Príncipe e outras comunidades visitadas por Pedro Álvares Cabral e seus acólitos nos anos que seguiram a saga imperialista portuguesa em vários continentes.
No exato instante em que suo frio para fechar este último parágrafo, chega ao mural da redação uma portaria do comandante-em-chefe Elsinho Dantas. O teor do documento é dogmático: nenhum repórter, veterano ou novato, será penalizado financeiramente por infringir as normas gramaticais recém-instituídas. Em compensação, a cada três erros comprovados será descontado um dia da aposentadoria. Aí fica difícil, né, professor João Bosco?
*Jornalista

Um comentário:

Anônimo disse...

À propósito, eu estava revisando um livro do Stélio quando me dei conta, já terminando a tarefa, do Novo Acordo Ortográfico, do qual sabia algumas coisas, por alto. Aí fui atrás de analisá-lo mais detalhadamente.
De fato, não há nada demais, só que, em certas situações, ficamos confusos (já ficávamos com o acordo "velho"). Além do quê, é difícil aceitar que "heroico" não tem mais o agudo, mas "herói" tem. Ou que "autoescola" perdeu o hífen. Bom, o tempo nos fará esquecer essa estranheza. Antigamente, "ele" tinha circunflexo - "êle", o que hoje soa esquisito.
Ademais, vamos concordar: esse acordo não vai contribuir bulhufas. Né não, Prof. Beneilton?