quinta-feira, 20 de novembro de 2008

Beneilton escreve

Eu te odeio, vírgula!

Beneilton Damasceno *

Nesses vinte e um anos de ofício como revisor de textos, uma infinidade de episódios já desfilou perante este par de olhos comprometidos pelo cansaço da leitura cotidiana. De verdadeiras obras-primas, peças literárias capazes de causar inveja a oradores como Cícero, a manifestações de extrema crueldade contra a língua materna, de tudo este amigo já provou.

Inveja dos bons, indignação, surpresa, cólera (de raiva mesmo), desespero são alguns dos sentimentos experimentados em duas décadas de uma profissão que não consegue estimular concorrentes, não por competência deste que vos fala, mas porque a rotina de revisor produz reações adversas que afugentam o mais saudável dos candidatos: gastrite, hipertensão, ansiedade, enxaqueca, impotência (incapacidade de modificar as coisas, certo?), falta de amor-próprio...

Mas esses benditos efeitos colaterais seriam facilmente atenuados não fosse a existência de um singelo sinal gráfico criado especialmente para confundir quem se habilita a escrever e ler. O nome desse inimigo mortal da humanidade, que pertence ao sexo feminino, chama-se “vírgula”. Ela jamais escondeu sua aversão aos que passam a vida a lhe puxar o saco, no interesse de agradá-la encaixando-a onde não cabe ou omitindo-a do lugar no qual deveria estar.

Professores, jornalistas, revisores, escritores, blogueiros, autodidatas, advogados (esta categoria merece um estudo à parte), autônomos e alfabetizandos, para não mencionar todos os pecadores do planeta Terra, há muito jogaram a toalha ao reconhecer a falta de afinidade com algo a princípio tão insignificante, mas poderoso o bastante para tornar a mensagem escamoteada ou ininteligível, fato que torna inócua a comunicação entre os racionais.

Aqui ou ali, pessoas inconformadas perguntam se a gramática não registra alguns “macetes” para o uso correto da vírgula. Na verdade, procura-se regra para todos os “males”, como se a manifestação escrita fosse uma eterna refém das noções de etiqueta impingidas pelo high society. Não, companheiros, não existem normas para o emprego da vírgula. Infelizmente! Os manuais apresentam algumas noções que podem orientar quem redige a adequar na escrita a entonação da voz. E pára por aí. A solução, portanto, é a leitura - de boas obras, bons jornais, boas revistas. O que tem demonstrado ser tarefa dolorosa para a maioria das pessoas.

Escrever um livro hoje é café pequeno. Qualquer cidadão rabisca um monte de palavras no Word da maneira que lhe der na telha, e pronto: vira logo escritor. Algo parecido se dá com essa profusão de assessores de comunicação do prefeito fulano, do doutor beltrano, do deputado sicrano. Empurram releases para as redações de jornais com todos os vícios de linguagem a que têm direito. E “capricham” na vírgula, que se vinga deles. E aí sobra para o revisor, que sempre é lembrado quando a anomalia cai no juízo popular. A salvação é que, ao contrário do árbitro de futebol, sua genealogia pelo menos é preservada.

Considerações finais: este revisor, que pelo modo como se comporta dá sinais de ser um sujeito completamente recalcado, aproveita o espaço e pede desculpas ao leitor se, nas entrelinhas, deixou escapar nomes, atitude que afronta a ética e o respeito ao próximo. É que a vírgula é isso, amigo: ela tem o poder de tirar do sério até os que sempre provam estar a seu favor, mesmo contra a vontade.

Portanto (vírgula) eu te odeio (vírgula) vírgula!


* Jornalista

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