quinta-feira, 12 de novembro de 2009

Márcio Chocorosqui escreve


Só para ser politicamente incorreto
Márcio Chocorosqui*

Alguém faz uma proposta instigante ao modesto escriba:
— Por que não escrever algo politicamente incorreto?
— O quê, por exemplo?
— Talvez um texto que defenda o consumo do cigarro ou algo do tipo.
Então foi plantada uma semente. Eis que nasceu este pé de fumo, que não recomendo seja cultivado. Vejamos:
O cigarro traz grandes benefícios para a economia de um país. Gera milhares de empregos nas fábricas e plantações do tabaco, arrecada muito em impostos e, por mais estranho que pareça, ajuda a economizar na área de saúde. Pois a morte antecipada de fumantes propicia ao governo a redução de gastos com idosos e com o sistema de pensão e da previdência social.
Significa que o cigarro contribui para diminuir o número de pessoas que dão despesa na saúde pública, porque, muitas delas, se fumam, morrem antes do tempo. Com menos gente para cuidar, sobremodo na velhice, mais economia para os cofres públicos. Por outro lado, há de se destacar as vantagens que o fumo proporciona ao indivíduo. Entre as principais, estão os efeitos terapêuticos e psicológicos do tabaco: serve para acalmar os nervos, reduzindo o estresse e a ansiedade; ajuda a pensar melhor, aumentando a capacidade de concentração; consola nas horas de sofrimento, funcionando como um paliativo para as dores do espírito.
E não é somente isso. O cigarro emagrece, à medida que colabora para a diminuição gradual do paladar, tirando um tanto do sabor dos alimentos. Por isso, quando alguém para de fumar, tende a aumentar de peso. Além de contribuir para o controle da obesidade, um sério problema contemporâneo, o cigarro não embriaga, como o álcool. Se, ao invés de ingerir algumas cervejas, o indivíduo fumar uma carteira de cigarro e for dirigir seu automóvel, normalmente estará isento do risco de causar um grave acidente de trânsito. Já um bêbado...
Outra coisa: fumar é elegante. Existe uma satisfação estética na ação do fumante em tragar e soltar a fumaça com charme. Algumas formas de manifestação da arte exploram esse lado estético do tabagismo. O cinema é um exemplo sempre lembrado. O filme Casablanca, de Michael Curtiz, é uma citação clássica. Já na música, cita-se a ópera Carmen, de Bizet. Na literatura, os poemas de Mallarmé, entre outros. Lembro-me desses versos de “Vagabundo”, escrito por Álvares de Azevedo:

Eu durmo e vivo ao sol como um cigano,
Fumando meu cigarro vaporoso;
Nas noites de verão namoro estrelas;
Sou pobre, sou mendigo e sou ditoso!

Nessa estrofe, nota-se a expressão do personagem completamente despojado, que vive ao léu, livre das convenções sociais. No caso, o cigarro está associado à transgressão. E sempre foi ligado também a lutas de liberação sexual e política. Como se tudo isso não bastasse, fumar é legal. Ou seja, o cigarro é vendido livremente a qualquer pessoa, maior de idade, que queira consumi-lo. E não existe mais propaganda da indústria do tabaco. Trata-se de uma questão de escolha individual, de livre-arbítrio. O fumante sabe que o fumo é prejudicial à saúde. Se escolhe fumar, está por sua própria conta e risco.
A propósito, é interessante a conclusão do autor de Cigarros são sublimes, Richard Klein, crítico literário americano: “a própria vida é uma doença progressiva da qual só nos recuperamos postumamente. Se ter saúde é estar livre da doença, só se consegue ser saudável por meio da morte”. Eis aí: apenas algumas palavras filosóficas para encerrar o assunto.

*Professor de Língua Portuguesa, cineasta e um grande jogador de sinuca

terça-feira, 10 de novembro de 2009

Professor Bené escreve

O patrão dá com uma mão, o banco tira com as duas

Beneilton Damasceno *
benedamasceno@pagina20.com.br

Recebi faz umas três semanas, via celular, ligação da minha gerente de relacionamento de um banco estatal do qual sou correntista desde 1988, pouco antes do confisco da era Collor de Mello. Apreensiva com minha angustiada trajetória financeira como servidor da Ufac, graças às constantes investidas do Tribunal de “Cortes” da União (TCU), a generosa bancária me propôs um “empurrãozinho” providencial na modalidade pegar-ou-largar.

Na simulação, ainda pelo telefone, chutei alguma coisa perto de R$ 30 mil. Não demorou dois segundos e o cálculo estava prontinho (depois que inventaram esse tal de Excel, ninguém mais precisa consumir neurônios à toa para somar oito mais sete): o banco, cujo nome não vou revelar – apenas sei que é, com certeza, do Brasil -, me repassaria, ato contínuo, o valor proposto e subtrairia em folha, durante cinco anos, R$ 854 todo mês.

Nem precisei do Excel – a calculadora do próprio celular me auxiliou bastante naquele momento. O sonho de trocar o Ford Ka 2002 azul-celeste por um veículo mais robusto evaporou-se em questão de minutos. As sessenta prestações somariam R$ 51.240, numa humilhante taxa de juros de 72 por cento durante esse período. Nem pensei em pechinchar.

Tanta facilidade assim me fez recordar o drama dos barnabés da minha época para conseguir um mísero empréstimo algumas décadas atrás. Agora, com um caixa eletrônico ao lado de cada botequim e o CDC acessível a quem interessar possa, basta ter na mão pelo menos um dedo saudável e o desejo inamovível de se endividar “ad eternum”, e o milagre acontece! Falta pouco para as cédulas descerem por um buraco qualquer feito no PC do cidadão ou mesmo pela impressora.

Voltando ao assunto… Em 1977, quando trabalhava no Serda (antiga imprensa oficial), um colega igualmente mal-remunerado conhecido por “Galo Branco” peregrinou durante um semestre nas agências do então Banacre, Caixa Econômica e Banco do Brasil. Implorava por 14 mil cruzeiros. “Caso de vida ou morte”, costumava repetir, resignado, gerando comoção no restante da confraria. Apesar da demora, tudo caminhava na normalidade, mas a liberação do principal dependia, infelizmente, de um personagem tão difícil quanto alcançar a porta do céu: o danado do avalista.

Mas “Galo Branco”, que era brasileiro e não desistia nunca, foi abençoado com a proposta do comparsa “Carlinhos Pipira” de assinar o documento, exigindo como cachê uma grade de cerveja San Juan, importada da cidade peruana de Pucallpa e que fazia enorme sucesso na cidade. Na sexta-feira seguinte, o gerente ligou confirmando que o cheque já podia ser “distentado”.

Fim do expediente. O novo-rico acercou-se de outros dois parceiros e pôs em curso o “caso de vida ou morte” num inferninho todo cheio de luzes que mais parecia o disco voador da Lenilda Cavalcante. No bolso, os 14 mil cruzeiros (pouco mais de R$ 1.500 na moeda atualizada) nem esperaram as quatro da manhã para se converter em taças de uísque, honorários às mulheres da vida pelo item “prestação de serviços” e turnê por vários bairros de Rio Branco a bordo de táxi na temida bandeira 2. Os outros amigos do peito convidados para a boa ação foram o “Pedro Caveira” e o lendário “Pirra” (nascido Carlos Roberto Vieira da Mota), linotipista da empresa e cachaceiro registrado em cartório.

Aqui ou acolá, encontro “Galo Branco” nas imediações do prédio do Detran, na Estação Experimental. Conversa vai, conversa vem, todas as vezes deixo de fazer duas perguntinhas bem básicas: a primeira é confirmar informações de terceiros de que ele atua no ramo de empréstimo consignado por essas empresas que prometem os menores juros da praça sem consulta ao SPC ou à Serasa. A segunda, e mais óbvia, é saber o nome dele. Jamais tomei essa iniciativa nos dois anos em que fomos companheiros de profissão. Pensando bem, melhor assim. Afinal, ninguém tem como processar um desafeto por danos morais só porque mencionou seu apelido.

* Jornalista seringueiro

UNITALIBAN

Expulsa

domingo, 1 de novembro de 2009

Nada

Neguim tinha uns doze anos quando viu ele chorando, por trás da bananeira, no fundo do quintal. Ficou espantado e parou. Até esqueceu que ia tomar banho dentro da caixa d’água, que ficava depois da bananeira. Aprendeu mais uma lição com ele. Aprendeu que herói chora.

Olhos vidrados, olhos molhados. Situação esquisita. Neguim não sabia se continuava ou voltava pra dentro de casa. Em pé, congelado, Neguim viu e ouviu o choro. Era um choro grande, o choro de um homem grande. Neguim não entendeu nada. Como era possível aquele homão chorar?

Neguim chorou de medo quando ele o puxou pelo braço, o ergueu contra o sol e o abraçou carinhosamente, um abraço bem apertado, daqueles de tirar o fôlego. Ele chorou grandemente, gemeu, urrou assustadoramente. Neguim pensou na pisa que ia levar, por que achou que ele tinha descoberto a desobediência da ordem de não nadar dentro da caixa d’água do fundo quintal.

Nada foi dito. Palavra não foi falada. Os dois choraram. Cada um por seu motivo. Os dois sofreram. Os dois se amaram. Neguim entendeu, inexplicavelmente, que aquilo era a última lição, que não era uma reprimenda, que não aprenderia dele mais nada, que não haveria mais lição nenhuma. Neguim o abraçou com mais força. Não queria largá-lo nunca mais.

Neguim viu o papel, com manuscrito ilegível, com carimbo borrado, com assinatura de médico, jogado no buraco do fundo do quintal, o buraco onde se enterrava o lixo, o buraco antes da bananeira que ficava antes da caixa d’água, a caixa d’água onde Neguim não nadou nunca mais.